O Algarve povoado<br>de Glória Maria Marreiros

Domingos Lobo

Existe um Algarve dos panfletos turísticos, propagandeado como um espaço de lazer e relaxe; estreita faixa litoral belíssima, mar, sol, areia, arribas, onde vão passar quinze dias por ano, libertando-se das rotinas quotidiana, os que para tanto têm condições económicas e laborais que lhes permitem desfrutar desse privilegiado território.

Três meses em cada ano os hotéis, os restaurantes, as lojas de artesanato, os pubs, os jardins e as praças, agitam-se com uma mole imensa de turistas, nacionais e estrangeiros, que tornam o Algarve, entre Junho e Setembro, roteiro por excelência para os que pretendem gozar uns dias de sol, bronze e água a perder-se de horizontes. Alguns, vindos dos gelos do Norte europeu, ficam tão fascinados pelo clima que aí constroem morada para ao anos do fim: os reformados da Europa rica são, nos longos meses do frio, dos poucos que se atrevem a percorrer, em calções e T-shirt, as praias tomadas pelas gaivotas e pelo marulhar das ondas, como se o Verão, para eles, se prolongasse muito para além dos dias estreitos inscritos no calendário. Figuras estranhas, esses seniores residentes, nos seus coloridos trajos, insólitos transgressores do espaço que o Inverno tornou seu, nos dias em que as nuvens se deixam tomar por um sol baço e os barcos dos pescadores de Olhão, Tavira ou Lagos, se atrevem na faina.

Estes trânsfugas do Norte, são pequenos sinais perdidos na paisagem, a tentar perpetuar o Verão e esse Algarve que se transforma num cenário de papelão, povoado por estereótipos a fingir, por quinze dias, a felicidade; de pose, de circunstância, invadido por flashes, revistas cor-de-rosa, sorrisos bolorentos, políticos travestidos em vedetas, de calções largos e olhar pateta; um Algarve de passagem, culturalmente tolo, plástico, fabricado à medida dos dias batoteiros que vivemos; um Algarve de vivendas com piscina, de muros altos (o Algarve que Urbano tão bem caracterizou no romance Nunca Diremos Quem Sois), de estranhas cumplicidades (políticas, jornalísticas, empresariais), de interesses vários e convergentes; um submundo lodoso percorrido por actores de telenovela, cantores pimba, cartomantes, gigolôs; a feérica nocturna exibindo a efémera vacuidade das noites sem um estremecimento, uma inquietação, um esgar sobre o real que habita a escassos passos deste imenso plateau de vaidades.

Mas existe, por detrás desta evanescente cortina, um Algarve das gentes que o habitam doze meses por ano, feito por elas, que o sofrem e o mantêm económica e culturalmente vivo e em crescimento: professores, trabalhadores dos serviços, artesãos, operários, poetas, pescadores. Um Algarve telúrico e rural que nas escarpas da serra ainda cultiva o pão, os frutos, o mel, a alfarroba, o figo e vê, na Primavera, como nas lendas árabes dos seus ancestrais, a neve pintar os campos na flor das amendoeiras, e faz versos e cantigas e modinhas mandadas, e sobrevive à invasão bárbara que, lentamente, como os fogos cíclicos, lhe destrói a paisagem. Um outro Algarve, ainda com ressonâncias berberes no falejar, no uso das mezinhas, das ervas, nas crenças ténues, esparsas na cultura, do Islão – uma cultura fermentada pelos séculos, atravessada pelo esquivo céu dos hebreus. Um Algarve profundo, humano, que não colhe nos recortes badalados do biquini, nos campos de golfe, nas discotecas da moda; esse território das gentes que o habitam, que encontramos presente e afirmativo, com apuro sensível, com atenta dedicação, numa fala por vezes indignada, outras rumorejando um lirismo de puríssima fonte, um verbo sempre expressivo e lúcido, na obra de Glória Maria Marreiros.

Nascida em 1929, em Marmelete, Glória Marreiros sintetiza, numa quadra habitada por sonoridades populares, os seus passos primevos: Em Portimão fui gerada/em Marmelete nascida/em Lagos iniciada/nas coisas boas da vida.

Licenciada em filosofia pela Faculdade de Letras da UL, com uma pós-graduação em Museologia Social, Glória Marreiros viria ainda a cursar enfermagem, especialidade que lhe permitiu transpor para a literatura, quer na ficção, quer em livros de carácter didáctico, um introspectivo olhar sobre os universos femininos, sem que essa voz se assumisse moralista, superior, asseverativa, ao invés, clara, acessível e liberta dos pedantismos que inundam a prosa lusa que sobre esses assuntos se debruça.

Regressemos ao início deste texto e aos seus propósitos: o Algarve povoado de Glória Maria Marreiros. A bibliografia é vasta: Um Algarve Outro – contado de boca em boca (Livros Horizonte, 1991), Viveres, Saberes e Fazeres Tradicionais da Mulher Algarvia (Leda, 1995), Lagos , Séc. XVII e Séc. XX (C.M. de Lagos, 1996), Quem Foi Quem – 200 algarvios do séc. XX e Algarve a Gente e o Mar (Livros Horizonte, 2000). A esta lista, como se síntese de todos este universo sensitivo, afectivo e antropológico, se acrescenta o livro publicado pela autora em Outubro de 2015, Algarvios pelo Coração/Algarvios pelo Nascimento (Editora Colibri).

O Algarve não é, para o sagaz olhar de Glória Marreiros, um lugar apenas onde se está, um espaço onde se tem cama e conforto; não é apenas Portimão, Faro, Lagos, sobretudo, é um espaço povoado por pessoas singulares, memórias, história, afectos. Esses sentidos de pertença, de cumplicidade (a um lugar, a uma memória, aos seus signos identitários), fazem o grosso do acervo que neste livro inscreve gente de variados misteres, das artes à medicina, da política ao ensino, da engenharia à investigação, e o faz através de um rigoroso processo de inventariação e pesquisa, «de resumos de vida dos biografados», dando «visibilidade» a personalidades que, «das mais diversas formas» oferecem «um panorama da vida no Algarve no decorrer da última centena de anos». Todos quanto este livro acolhe tiveram, de formas várias, algo a ver com a história cultural, cívica, social e política do Algarve: os que ali nasceram e deixaram marcas várias nesse percurso; e os que a ele, «tomados pelo coração», legaram perenes testemunhos nas suas obras e acções. Quem um dia pretender fazer a história do Algarve e suas gentes, dos finais do século XIX aos nossos dias, tem nos livros de Glória Marreiros, e neste em particular, matéria de sobra, que permite encetar pesquisa informada e profícua, mesmo nos territórios derivantes da etno/antropologia.

Dezenas de nomes, com biografias e notas, produto de um labor intelectual que é justo realçar, preenchem este Algarvios pelo Coração/Algarvios por Nascimento, que prossegue, aprofunda e actualiza, o registo iniciado com o livro Quem Foi Quem? – 200 Algarvios do Século XX.

Termino com um texto de Glória Maria Marreiros, em que esse Algarve, que não vem nos postais turísticos, melhor se inscreve – e nos dói: Miúdo do Cais: – Mocinho, não vais à escola? – Na senhora... na sê ler, o que vou eu lá fazer? – Mocinho, não tens sapatos? – Na senhora... os mês peses são mais grandes q´us sapatos. Os peses da gente são como os passarinhos, na apreciem gaiola.1

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1 in Algarve, a Gente e o Mar – Livros Horizonte, 2002




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